A realidade do idoso em Goiás: histórias de abandono, preconceito e solidariedadeE
dson Leite JúniorAbandono e relatos de preconceito com a idade são comuns entre pessoas com mais de 60 anos; elas ainda têm muito a ensinar, mas poucos jovens querem ouvirMaria Inocência de Souza vai completar 97 anos em julho é a paciente mais velha da Vila São Cottolengo, a maior instituição filantrópica do Centro-Oeste. Ela foi deixada na porta do local sem nada, apenas com a roupa do corpo. Por isso, a idade dela na época precisou ser estimada para que fosse feita toda a documentação e iniciado todo o registro no espaço de tratamento e acolhimento que é referência no Brasil.Dona Inocência viu a vida passar nos corredores da Vila com seu olhar doce e sereno. Se tornou idosa no local e nunca perdeu uma característica que tem desde quando chegou por lá: a vaidade. Com tiara na cabeça, pulseira no braço e vestido florido, ela só reclamou quando percebeu que estava sem o anel na hora de tirar a foto. Maria tem múltiplas deficiências (intelectual, auditiva e física) e por isso não consegue falar e vive em uma cadeira de rodas desde quando foi abandonada.Com 86 anos, José Silva é o paciente homem mais velho da Vila São Cottolengo. São 58 anos só de internação. Chamado carinhosamente de vozinho, há poucas informações sobre como ele teria chegado até ao local. Há relatos de que antigamente, muitos deficientes eram abandonados nas ruas de Trindade, principalmente na época da Festa do Divino Pai Eterno. Sem ter pra onde ir, essas pessoas eram acolhidas na Vila. Esse, provavelmente foi o caso dele. Assim como de Dona Inocência e de tantos outros.Recentemente um irmão e uma sobrinha foram encontrados. Apesar de não conseguir falar, a fisioterapeuta Jéssica Renata Araújo, que acompanhou a visita, disse que ele conseguiu esboçar uma reação ao ver os parentes depois de tanto tempo. “Ele fez uma cara de quem lembrou. Até riu”, afirmou.Com múltiplas deficiências e aos 68 anos, Maria Margarida de Jesus vive na Vila São Cottolengo há 20 anos. Antes, trabalhou a vida toda como empregada doméstica. “Peguei tanto no pesado que hoje não ando mais”, disse com pesar. Hoje passa seus dias sentada em uma cadeira de rodas para ver o movimento. Ela tem um filho de 40 anos que a visita quando pode.Para falar do filho, a mãe Margarida chega a mudar a expressão e esboça uma reação de muito amor e carinho. Quando conversou com a reportagem do Jornal Opção, ela já estava ansiosa para visita do Dia das Mães. “Tem que trazer presente”, cobrou.Na Vila, Margarida tem muitos amigos. “Converso com eles, são muito agradáveis. Aqui somos uma família de Deus”, relatou. Ela diz que é muito feliz onde mora com todos os atendimentos médicos que recebe. E tem até um salão de beleza que recebeu o nome dela: o Salão Margarida. Quando bate a saudade, ele pede pra ligar pro filho. E o futuro ela coloca nas mãos do divino: “só Deus dirá”.Outra moradora da Vila é a Divina Luiza, que tem 71 anos. Ela também tem um filho, que também tem síndrome de down e irmãs vivas. Recebe visitas periódicas da família, mas as ligações de telefone são praticamente mais frequentes e matam um pouco da saudade de casa. Na hora da visita, dona Divina, que costuma ser super falante e alegre, não estava bem disposta. Sentia dor. E nem isso a impediu de recitar alguns versinhos que aprendeu sozinha quando criança.A alguns quilômetros dali, Marcos de Olieira Kreimer, de 68 anos, é praticamente um recém-chegado na Vila Vida, um centro de atendimento a idosos que possui casas-lares para essa população mantido pela Organização das Voluntárias de Goiás (OVG). Ele vive lá há sete meses. “Aqui a gente encontra uma estrutura maravilhosa que eu jamais imaginava que existisse”, elogiou. E ele destacou ainda o que chamou de “humanidade” no tratamento que ele recebe dos funcionários do local.Seu Marcos disse que encontrou na Vila Vida um calor humano que pensou que jamais existisse no país. “A gente vê na televisão o Datena mostrando tanta coisa ruim que existe por aí e aqui é o contrário. Eu percebo nos funcionários o amor ao idoso”, comparou. Ele considera sua atual residência um refúgio onde se sente muito bem: seguro, acolhido e respeitado. “À noite posso andar pelas ruas com as lâmpadas dos postes ligados. Nem parece Brasil”, destacou.Tão branco quanto seus cabelos, seu Marcos chegou em Goiânia em uma aventura. Antes, ele morava no Rio de Janeiro e estava insatisfeito com seu casamento. Além disso, ele relatou que foi assaltado umas cinco vezes por lá e estava infeliz. “Nunca tive uma identidade com o Rio”, afirmou. Depois que um colega de trabalho falou sobre Goiânia, o idoso não pensou duas vezes: deixou tudo pra trás. Largou a esposa, pegou um ônibus e veio parar na capital de Goiás. E isso já faz dez anos. Na época ele estava no alto de seus 58 anos.Em Goiânia, com dez dias, já estava empregado, “mesmo com esses cabelos brancos que tenho”. E ele disse que foi sorte. “Quando o cabelo começa a embranquecer, a sociedade começa a fechar as portas. O pessoal é muito preconceituoso com a idade”, declarou. Em terras goianas trabalhou com vendedor de cestas básicas, em uma funerária e foi operador de brinquedos no Parque Mutirama. E foi uma supervisora do parque que disse para seu Marcos da existência da Vila Vida. Para ingressar, se candidatou por duas vezes e, na segunda, conseguiu a vaga.No seu dia a dia, seu Marcos é muito ativo. “Eu adoro ter o que fazer”, explicou. O que mais gosta de fazer em seu tempo livre é ler livros de autoajuda e andar de bicicleta. “Se precisar, pego minha bicicleta e vou do Terminal Padre Pelágio ao Jardim Novo Mundo. Não gosto de ficar parado”, garantiu. E o idoso acredita que, quando a pessoa vai ficando mais velha, tem que pensar em ter o que fazer “para não ficar aquele velho chato, sem assunto e que desagrada a todos com lamentações”, argumentou.Segundo Marcos, o preconceito contra a pessoa idosa é muito grande e ele reclama da forma com que a sociedade trata os idosos. “A gente só vê o idoso sendo jogado ao léu, como se fosse um balde de lixo, uma pessoa que não presta mais pra nada”, lamentou. Apesar disso ele garante: “Envelhecer é bom. Pior é morrer antes de ficar velho”, garantiu com um sorriso tímido que revela falhas.De descendência romena (seus avôs vieram para Brasil fugindo da 2ª Guerra Mundial), seu pai era judeu e sua mãe católica. “Quando eu passava pelo quarto deles uma estava lendo a Bíblia e o outro lendo o Torá”, lembrou. Hoje, o idoso é evangélico.Há mais tempo na Vila Vida, a professora aposentada Louines Obregon é viúva, tem 80 anos e é uma das moradoras das casas-lares mais antigas. Vive lá há 18 anos. De Campo Grande, no Mato Grosso do Sul, ela chegou a Goiânia por conta de um problema de saúde de seu pai, quando já tinha aposentado da sala de aula. “Acabei ficando por uma sugestão dele, inclusive. Ele veio passear na Vila Vida e me disse que aqui era o lugar pra gente e eu adotei a ideia”, revelou.O filho de dona Louines mora no Mato Grosso e a visita uma vez por ano. Mas ela garante que não sente tanta saudade porque a vida dela aqui é mais “preenchida” por conta das atividades oferecidas aos idosos no condomínio onde vive. Ela gosta muito de leitura, de ir ao shopping, restaurantes e de ficar conectada à internet. “Eu começo o meu dia ligando o meu tablet para ler pesquisas, principalmente as relacionadas à saúde”, revelou.E dona Louines não é a única. Os dados mais recentes do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) indicam que o uso da internet por idosos tem aumentado expressivamente nos últimos anos. Em 2021, pela primeira vez, mais da metade dos idosos acessaram à internet. O percentual de utilização da internet pelas pessoas com 60 anos ou mais de idade saltou de 44,8% para 57,5%, entre 2019 e 2021.Mas se engana quem pensa que o celular é a única distração da idosa. A aposentada também elogia a cartela de atividades oferecidas pelo espaço. “Tem hidroginástica, pilates e fonoaudiologia”, enumerou algumas. Segundo ela, “isso ajuda para o estado emocional”.Dona Louines reconhece que a realidade do idoso no Brasil é muito difícil. “Existe um problema cultural do idoso ficar muito de lado e ele não gosta disso. Gosta de ser incluído”, revelou. Ela acredita que, muitas vezes, o idoso está com a família e não se sente bem. O motivo? Ela mesma conta: “porque as pessoas não têm empatia, não o entendem”. Mas na Vila Vida ela se sente feliz, ouvida e respeitada. “Quando saio, sinto falta do meu cantinho”, revelou. E, aos 80, ela ainda tem um sonho: aprender Libras.A aposentada lembrou de uma palestra em que ouviu que o idoso se torna criança de novo e ficou horrorizada com a fala. “O idoso odeia ser comparado a uma criança. Cadê a bagagem que ficou lá atrás? Quando eu tinha 20, eu era uma; quando eu tinha 30, eu era outra; 40, 50, cheguei aos 80. Será que hoje eu sou criança?”, questionou.A professora avalia também que muitos idosos são resistentes à mudança. “Para aprender, não tem idade. Não sei quanto tempo de vida tenho pela frente, mas quero que sejam bem vividos”, explicou. E o futuro não a preocupa. “O futuro, tanto pra mim quanto pra você que é jovem, é imprevisível. Não adianta a pessoa sobrecarregar a mente com o amanhã”, ensinou.E Dona Louine dá uma dica aos mais jovens: “Precisam aprimorar a habilidade da empatia, saber escutar o idoso. Isso porque os idosos estão muito dispostos a ensinar, só basta o jovem querer ouvir.O aposentado Olímpio Martins de Araújo tem 91 anos e já frequenta a Vila Vida há 27 anos. Olímpio conheceu a Vila Vida por intermédio do seu pai Agripino Gonçalves Araújo, que morreu com 100 anos. “Graças a ele eu aprendi a gostar daqui”, lembrou. No espaço ele é voluntário e é o coordenador do truco e da canastra dos idosos. Os parceiros de jogo são seus verdadeiros amigos. “Isso aqui chama cantinho da felicidade”, afirmou.Morador do Setor Coimbra há 65 anos, seu Olímpio é casado há 69 anos com Valdeci Mesquita de Araújo, que também tem 90 anos. Só de aposentado, ele já completou 27 anos. Desde então, ele vai à Vila Vida para jogar baralho, uma paixão que vem desde jovem. Ele conta que já foi campeão goiano de truco. E além da jogatina, o aposentado também gosta de pescaria. A idade não o impede de ir pescar com os filhos, netos e bisnetos no Rio Vermelho.E seu Olímpio é festeiro. Todos os meses é ele quem organiza a festa dos aniversariantes do mês (truqueiros, funcionários e moradores da Vila Vida). E não é pra menos: o aposentado esbanja saúde e se gaba de tomar apenas um remédio por dia: “pra tireoide”, contou. E a receita para o feito ele dá listando o que é proibido: “tomar café, beber pinga e negativismo”.No grupo de truqueiros, tem os voluntários que ele chama de “poderosos”: fazendeiros, advogados, empresários (todos aposentados) que, segundo ele, são muito ricos e que muitas vezes ajudam até com recursos financeiros para melhorias. E um ponto destacado por seu Olímpio é que, jogando truco, as diferenças sociais somem. “Eles são ricos lá pra fora. Aqui todo mundo é peão, jogador de truco e amigo. E quando a gente fala pra ajudar alguma pessoa, todos colaboram”, elogiou.Elevação da expectativa de vida aumenta o desafioDe acordo com o superintendente do IBGE em Goiás, Edson Roberto Silva, o Brasil tem passado por um processo de elevação da expectativa de vida desde a década de 1940, registrando, de lá pra cá, um aumento de mais de 30 anos para ambos os sexos. “Um resultado dos avanços na medicina, decorrentes, em primeiro lugar, do surgimento e da disponibilização de antibióticos, campanhas de vacinação em massa, atenção ao pré-natal, aleitamento materno, agentes comunitários de saúde e programas de nutrição infantil”, enumerou Edson.Somado a isso, o superintende aponta que foi verificado no período uma queda da mortalidade da população idosa, especialmente daquela com mais de 80 anos, por conta da melhoria observada no tratamento de doenças crônicas e de outras doenças que mais afetam a população idosa, como arteriosclerose, mal de Alzheimer, doenças cardiovasculares e enfermidades hipertensivas. “Esse processo, aliado à redução da taxa de fecundidade no país, tem tido como resultado o envelhecimento do país”, explicou.O Estatuto do Idoso define a pessoa idosa como sendo aquela com 60 anos ou mais de idade. E segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD), a taxa de analfabetismo entre idosos em Goiás era de 17,2% em 2019, abaixo da média nacional. Para se ter uma ideia, o estado com maior taxa de analfabetismo em 2019 era o Maranhão, com 46,1%, seguido pelo Piauí (41,6%) e Alagoas (41,1%). Já as menores taxas foram registradas no Rio de Janeiro (5,5%), Rio Grande do Sul (7,0%) e Santa Catarina (7,4%).Atendimento gratuito aos idososRecentemente, a Vila Vida passou por reforma. A estrutura parece um pequeno condomínio de casas, com segurança 24 horas e diversos atendimentos para os idosos. O investimento nessa obra foi de mais de R$ 1 milhão e a melhoria pode ser confirmada no sorriso de cada morador. “Já era boa, mas agora tem ainda mais segurança e conforto”, afirmou a diretora-geral da OVG, Adryanna Melo Caiado.O Governo do Estado, por meio da OVG, mantém quatro unidades exclusivas para o atendimento aos idosos em Goiânia. Juntas, atendem mais de 1.500 idosos por mês, tudo a custo zero para a comunidade.As unidades que oferecem esse atendimento são os Centros de Idosos Vila Vida e Sagrada Família, e os Espaços Bem Viver I e II. O valor mensal investido pelo Governo de Goiás nessas quatro unidades de idosos ultrapassa R$ 1 milhão de reais.Entre os serviços ofertados estão as modalidades Centro Dia, em que os idosos participam de atividades ao longo do dia e retornam para casa no fim da tarde; Casa Lar, onde os idosos com autonomia funcional vivem em casinhas individuais em pequenas vilas; Instituição de longa Permanência para Idosos (ILPI), com atendimento em horário integral com profissionais de saúde e cuidadores; e Centro de Convivência que recebe pessoas da comunidade para a prática de atividades gratuitas.A seleção dos beneficiados pela OVG nas unidades destinadas aos idosos é realizada mediante solicitação formal feita via protocolo, na sede da organização, com a apresentação de toda a documentação necessária.Após essa solicitação, os dados são analisados, tendo em vista que esse é um trabalho destinado àqueles que se encontram em extrema vulnerabilidade social, situação de risco ou de abandono familiar. Uma vez que o idoso atenda a esses requisitos, ele passa a integrar uma lista de espera enquanto aguarda a liberação de vaga.Já para os idosos que querem participar das atividades de Centro de Convivência e fortalecimento de vínculos, basta se dirigir às unidades com os documentos pessoais para se inscrever. Tudo isso sem nenhum custo para o idoso ou para a família.Além do acolhimento, a OVG doa também benefícios como cadeiras de rodas, bengalas, andadores, muletas e fraldas descartáveis a pessoas com mais de 60 anos; fornece refeições nas unidades do Restaurante do Bem e acolhe idosos na Casa do Interior, durante tratamento de saúde na capital.Já na Vila São Cottolengo, o atendimento, também 100% gratuito, atende 320 pacientes. De acordo com o diretor-presidente da entidade, Irmão Michael Dourado, na fila de espera, estão outros 150. Mas, para abrir vaga, precisa ter óbito. “Graças a Deus temos poucas mortes aqui. E isso mostra que quem está aqui está bem cuidado”, avaliou.De fato, ter idosos na casa é a garantia que de um bom trabalho, mas o envelhecimento também requer muito mais cuidado. “Nós temos pacientes que chegaram crianças e hoje já são idosos. Acompanhar o envelhecimento deles é um processo que requer cuidado e atenção”, se orgulha Michael.Mas com aumento da média de idade, aumenta o custo, que, em média, aumentam de 15% a 20% a cada ano. Hoje, quase 50% dos pacientes da entidade são idosos. E o que a Vila São Cottolengo recebe do Sistema Único de Saúde (SUS) paga apenas a metade dos custos.O governo estadual repassa ainda com um complemento. “Já ajuda muito, mas ainda não cobre todo o gasto”, revelou o diretor-presidente. O restante do dinheiro para pagar as contas vem de doação.E ao olhar para a sociedade, Michel acredita que a causa da pessoa idosa merece ser olhada com mais atenção. “Cuidar dos idosos é algo fundamental. São pessoas que doaram a vida em prol de tantos e a nossa missão também cuidar de quem fez tanto por nós”, afirmou.O diretor-presidente da Vila São Cottolengo cobra mais políticas públicas específicas para idoso. “Até porque daqui a pouco seremos nós a viver isso e precisamos ser bem cuidados.