Por que interior do Pará vive nova onda de violência agrária 17 anos após morte de Dorothy Stang
Dezessete anos depois de ser o palco do assassinato da freira americana Dorothy Stang, o município paraense de Anapu voltou aos holofotes por causa da violência.
As tensões têm relação com a atuação da missionária americana e jamais foram totalmente dissipadas.
No entanto, analistas apontam que mudanças na política federal de reforma agrária, com a quase paralisação da criação de assentamentos pelo governo atual, podem estar acirrando os conflitos (leia mais abaixo).
Casas incendiadas
Em 11 de maio, moradores de uma comunidade rural de Anapu próxima à Rodovia Transamazônica disseram que homens armados e encapuzados incendiaram duas casas locais.
Segundo as famílias, os homens afirmaram que estavam realizando uma ação de reintegração de posse e que os moradores teriam de deixar a área.
Os moradores então acionaram a polícia, que negou que houvesse qualquer ordem de reintegração de posse no local.
A polícia chegou à comunidade quando os homens encapuzados ainda estavam presentes. Segundo os moradores, a polícia não deteve os homens e deixou que fossem embora. Não houve feridos.
Questionada pela BBC News Brasil sobre os relatos de que teria liberado os homens encapuzados, a PM do Pará não se manifestou.
Dezessete anos depois de ser o palco do assassinato da freira americana Dorothy Stang, o município paraense de Anapu voltou aos holofotes por causa da violência.
As tensões têm relação com a atuação da missionária americana e jamais foram totalmente dissipadas.
No entanto, analistas apontam que mudanças na política federal de reforma agrária, com a quase paralisação da criação de assentamentos pelo governo atual, podem estar acirrando os conflitos (leia mais abaixo).
Casas incendiadas
Em 11 de maio, moradores de uma comunidade rural de Anapu próxima à Rodovia Transamazônica disseram que homens armados e encapuzados incendiaram duas casas locais.
Segundo as famílias, os homens afirmaram que estavam realizando uma ação de reintegração de posse e que os moradores teriam de deixar a área.
Os moradores então acionaram a polícia, que negou que houvesse qualquer ordem de reintegração de posse no local.
A polícia chegou à comunidade quando os homens encapuzados ainda estavam presentes. Segundo os moradores, a polícia não deteve os homens e deixou que fossem embora. Não houve feridos.
Questionada pela BBC News Brasil sobre os relatos de que teria liberado os homens encapuzados, a PM do Pará não se manifestou.
A comunidade atacada mora no Lote 96 da Gleba Bacajá – uma terra disputada entre as famílias de pequenos agricultores e herdeiros do fazendeiro Antônio Borges Peixoto, morto em abril de 2022.
Os pequenos agricultores pleiteiam há vários anos a criação de um assentamento de reforma agrária no local. Já a família de Peixoto quer a expulsão dos pequenos agricultores e diz ser dona legítima da área.
A BBC contatou o advogado Rubens Antonangelo, que representou o fazendeiro por vários anos, mas ele afirmou que deixou de atuar no caso e não poderia comentá-lo.
Os herdeiros de Peixoto e seus advogados atuais não foram localizados.
Recentemente o grupo de pequenos agricultores do Lote 96 teve uma importante vitória contra a família do fazendeiro.
Em 16 de maio, a Justiça Federal de Altamira (PA) determinou que o Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) crie um assentamento no lote 96 e em outros três pontos da Gleba Bacajá onde também há conflitos fundiários, nos lotes 39, 41 e 97.
A decisão judicial ocorreu quase um ano após um revés sofrido pelos moradores: em junho de 2021, um juiz determinou que 54 famílias fossem retiradas do Lote 96.
Histórico do conflito
De forma geral, as disputas na Gleba Bacajá opõem, de um lado, pequenos agricultores e, do outro, fazendeiros que dizem ser os donos das áreas.
Os embates remontam aos anos 1970, após a inauguração da Rodovia Transamazônica. Na época, a ditadura militar distribuiu terras públicas nas proximidades da estrada a fazendeiros, que, em troca, deveriam torná-las produtivas.
A estratégia seguia o lema “Integrar para não entregar”, com o qual os militares buscavam levar moradores de outras regiões do país para a Amazônia sob o pretexto de garantir a soberania brasileira sobre a região.
Em dissertação de mestrado apresentada em 2011 na Universidade Federal do Pará (UFPA), a agrônoma Ione Vieira dos Santos descreveu a ocupação de Anapu.
Segundo a agrônoma, enquanto em outros trechos da Transamazônica houve apoio à instalação de pequenos agricultores, em Anapu, o governo privilegiou fazendeiros que, em sua maioria, eram também empresários do setor de madeira.
Mesmo depois do fim da ditadura, segundo Santos, o grupo continuou favorecido por políticas públicas, como financiamentos atrelados à ocupação das terras.
Porém, muitos desses fazendeiros jamais ocuparam de fato as áreas. Outros extraíram a madeira e repassaram os lotes a terceiros. Também surgiram grileiros que tentaram se apossar das terras.
Como consequência, diz Santos, Anapu virou “um palco de grilagem de terra e conflitos agrários”.
Nesse cenário, pequenos agricultores começam a se organizar para reivindicar terras na região.
Em 1997, liderados pela missionária Dorothy Stang, eles solicitaram duas grandes áreas onde pudessem criar assentamentos e, ao mesmo tempo, conservar a natureza – modelo que acabou batizado de Projeto de Desenvolvimento Sustentável (PDS).
Essas áreas abarcavam lotes que haviam sido repassados a fazendeiros, mas que foram recuperados pela União por conta do descumprimento dos acordos sobre o uso das terras.
As áreas deram origem aos Projetos de Desenvolvimento Sustentável (PDS) Esperança e Virola-Jatobá, criados pelo governo federal em 2002.
Nos PDS, cada família recebeu 20 hectares de terra, e o restante do território foi reservado para uso coletivo, onde a mata deveria ser preservada.
Mesmo após a criação das unidades, porém, “madeireiros e pecuaristas pretendentes às mesmas glebas continuaram agindo, inclusive utilizando como via de acesso para a retirada de madeira pequenos rios que cortam essas áreas”, diz Santos em sua dissertação.
Os conflitos acabaram vitimando a própria irmã Dorothy, morta numa emboscada no PDS Esperança em 2005.
Investigações apontaram que a morte foi encomendada por fazendeiros que reivindicavam áreas que poderiam ser incorporadas pelo PDS Esperança. Cinco acusados pelo crime foram condenados.
Desde então, Anapu jamais deixou de registrar episódios de violência no campo. Segundo a Comissão Pastoral da Terra (CPT), desde 2015, ao menos 19 pessoas foram mortas no município em casos relacionados a disputas por terra.
Influência de Belo Monte
Funcionários de órgãos públicos que acompanham a disputa no Lote 96 da Gleba Bacajá veem paralelos entre esse conflito e o que vitimou a irmã Dorothy.
Sob condição de anonimato, eles disseram à BBC que a missionária foi a primeira pessoa a defender que essas terras eram públicas e, portanto, deveriam ser destinadas à reforma agrária.
Ainda assim, muitos moradores do Lote 96 não viviam no local quando Dorothy era viva, afirmam.
Segundo os entrevistados, boa parte das famílias migrou para o município vizinho de Altamira para trabalhar na construção da hidrelétrica de Belo Monte, inaugurada em 2016.
Com o fim das obras, várias dessas pessoas passaram a buscar terras em regiões vizinhas, e algumas foram parar no Lote 96, em Anapu.
Em 2016, uma reportagem da BBC mostrou a associação entre a construção de Belo Monte ao acirramento de conflitos agrários em outra região de Anapu conhecida como Mata Preta.
Na ocasião, a Norte Energia, consórcio de empresas que administra Belo Monte, negou que houvesse qualquer relação entre as obras da usina e a violência em Anapu.
“Infelizmente, conflitos no campo são uma realidade presente desde a ocupação em massa de terras na Amazônia na década de 1970, em especial no Pará e na região da Rodovia Transamazônica”, disse o consórcio.
A disputa atual em torno do Lote 96 se dá num momento de quase paralisação na criação de assentamentos de reforma agrária.
Desde a gestão Michel Temer (2016-2018), o governo federal vem reduzindo a verba destinada à aquisição de terras para o Programa Nacional de Reforma Agrária e ampliando a concessão de títulos individuais de propriedade.
Bolsonaro acelerou os dois movimentos – estratégia que, segundo ele, busca reduzir a influência do MST (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto) sobre os assentados.
“O integrante do MST, o assentado, ao receber um título de propriedade, passou a ser um cidadão e ficou do nosso lado. Quando estava do outro lado, ele era obrigado a seguir orientações de João Pedro Stédile (líder do MST), entre outros marginais. E hoje em dia, ao receber o título de terra, passou para o lado do bem e é parceiro do fazendeiro”, afirmou o presidente, em 14 de maio.
A concessão de um título de propriedade é muito mais simples e barata do que a criação de um assentamento.
Enquanto a última medida exige investimentos na infraestrutura do assentamento, que garantam sua viabilidade econômica, a primeira iniciativa basicamente se limita à entrega de papéis.
Em entrevista à agência Bloomberg em 12 de maio, o dirigente do MST João Pedro Stédile disse que a política atual do governo deixa os assentados “à própria sorte”. Ele defendeu que o governo priorize a titulação por meio da Concessão de Direito Real de Uso (CDR) – modalidade que, segundo ele, “protege os direitos das famílias assentadas como beneficiárias de um conjunto de políticas públicas que são dever do Estado”.
Nesse modelo, o Estado segue como proprietário da área, mas fica incumbido de promover melhorias no assentamento.
O governo, no entanto, tem priorizado outras modalidades de titulação.
Clima favorável a fazendeiros
No caso de Anapu, servidores ouvidos pela BBC em condição de anonimato afirmaram que a redução das verbas federais para a criação de assentamentos tem encorajado grileiros e fazendeiros nas disputas com sem-terra.
Eles citaram outro fator que pode estar por trás do acirramento das tensões: a possibilidade de que Bolsonaro perca a eleição presidencial e o novo governo endureça o combate a crimes ambientais e fundiários na Amazônia.
Essa perspectiva, segundo eles, estaria fazendo com que grileiros e fazendeiros tentem expulsar pequenos agricultores de áreas em disputa para repassá-las a terceiros antes que o novo governo assuma.
Questionado pela BBC se a nova política agrária federal não poderia estar acirrando os conflitos em Anapu, o Incra citou dois assentamentos recentemente criados no município: o Mata Preta e o Mata Verde.
“Somados, esses projetos vão beneficiar 250 famílias, com mais de 18 mil hectares destinados para a reforma agrária.”
O órgão disse ainda que sua unidade em Santarém (PA) “tem atuado ativamente” nos conflitos agrários em Anapu.
“O Incra não pactua com quaisquer atos de violência. Ameaças à segurança devem ser reportadas às forças estaduais de segurança pública, que têm a competência de proteger a integridade dos cidadãos”, disse o órgão.